quinta-feira, abril 14

Vinte centavos, senhora? Só vinte centavos...



Ele vivia sempre perambulando aqui nas imediações do trabalho. Devia ter uns 45, 50 anos no máximo... era moreno, quase mulato, grandalhão, quase balofo, e embora estivesse sempre com as roupas gastas, estava sempre barbeado e com o cabelo bem cortado, asseado, falava com um tom gentil, não parecia ser mendigo. Ficava sentado na beira da calçada com a mão estendida e pedia sempre um valor específico: - Noventa centavos, senhora? Só noventa centavos!

Às vezes também perambulava pela rua, nas portas dos restaurantes, pelas passagens de quem vai e volta do trabalho: - Um real, senhora? Só um real... A frase era sempre essa... um pedido, seguido de uma reafirmação; a única coisa que mudava era o valor, que variava de cinco centavos a dois reais, aleatoriamente, dependendo do dia... nunca era uma moedinha, ou uma ajuda, era sempre um valor pré-especificado que nem sempre coincidiam com as moedas correntes... oitenta centavos, quarenta, quinze... A maioria das pessoas já nem lhe dava mais atenção, passava por ele como se ele fosse invisível, e talvez por isso não reparavam nos seus olhos tristes, precisados muito mais de um olhar de reconhecimento, de um aceno, do que do dinheiro propriamente dito, sempre suspeitei.

Às vezes eu dava a ele alguma moedinha, não me preocupava em dar o valor pedido, e ele nunca reclamou. Às vezes eu não tinha mesmo, mas sempre o cumprimentava, respondia que hoje não tinha, que ficava para uma próxima vez, ao que ele respondia repetindo a frase da abordagem, acrescida apenas de um “mas” na frente, e com um tom um pouquinho mais suplicante: - Mas sessenta centavos, senhora, só sessenta centavos...

Às vezes ele ficava uns dias sem aparecer, chegou a ficar algumas semanas, mas sempre voltava. Até que um dia, sem que ninguém soubesse precisar exatamente quanto tempo havia passado desde o último dia em que foi visto, ele sumiu. Comecei a dar pela falta dele há um tempo atrás, ficava naquela de que daqui a uns dias ele iria aparecer, e aí passou uma semana, duas, três, um mês, dois, três... e hoje, passando pela calçada em frente ao degrau onde ele costumava se sentar, eu senti falta dele. Senti falta daquela sacudida eventual, que me tirava do estado de transparência, que fazia com que minhas moedas largadas no fundo da bolsa ficassem sempre pesadas demais, que batia de frente com a minha vida certinha.

Não faço ideia do que pode ter acontecido com ele... sem família, sem nada, pode estar em algum lugar passando sérias dificuldades, pode ter sido recolhido em algum abrigo ou em alguma instituição para doentes mentais, pode ter morrido, pode ter simplesmente mudado de ponto de parada e estar lá com sua mão estendida em outro lugar qualquer da cidade. Entretanto, todas essas hipóteses são muito irreais, fantasiosas demais... prefiro acreditar que tenha acontecido o mais óbvio mesmo, o mais plausível – ele, na verdade, é herdeiro de alguma família muito rica, estava perdido e finalmente foi encontrado e resgatado. Hoje deve estar passando muito bem, bem vestido, asseado como sempre, gentil, andando por aí com o olhar triste substituído por outro, transbordante de bondade... um verdadeiro lord, a se dirigir aos passantes: – Uma ilusão, senhora? Só uma ilusão...

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