Texto enviado pelo Marcelo Pereira, um dos nossos queridos leitores.
A mãe da Isabela começou a ver suas amigas casarem e engravidarem aos 20 e poucos anos. O pai da Isabela, também aos 20 e poucos anos, terminou a faculdade, paga pelo pai e ganhou um carro zerinho. Seus amigos também estavam todos se casando, as conversas mudando, era chato ser o único solteiro. Em todo lugar eles liam e ouviam que deveriam estar se sentindo incomodados por um negócio chamado "relógio biológico". Que se a moça não tivesse filhos logo, depois ia ser difícil. Que se demorassem muito, depois, quando as crianças estivessem um pouco mais crescidas, eles seriam praticamente avós dos filhos. Os pais deles adoraram a notícia do casamento. Compraram apartamento e deram de presente, ajudaram a preparar a festa, que é claro, foi muito mais bonita, cara e suntuosa do que a da prima que havia se casado no mês anterior. Além do sofá, da geladeira e da TV, eles ganharam coisas utilíssimas e indispensáveis como abridores de lata elétricos, maquininha de fazer capuccino a laser, descascadores de banana, travesseiros fabricados pela Nasa e muitas outras coisas legais. Quando veio a gravidez, então, foi uma festa... todos os amigos deram fraldas, milhões de brinquedinhos, roupas de griffe (era importante a griffe, a bebezinha poderia ter ficado traumatizada se tivesse começado a usar um vestidinho qualquer).
Isabela nasceu, e aí a coisa começou a degringolar. O pai, por exemplo, tinha o abominável hábito de não lavar o copo de leite que ele bebia a noite. Deixava na bancada da cozinha. A mãe, por sua vez, hedionda, não tinha o cuidado de retirar todos os fios de cabelo que caíam na pia quando ela lavava o rosto de manhã. É óbvio que com comportamentos terríveis como esses a coisa não tinha mesmo como dar certo. Ninguém pode ser obrigado a conviver com esse tipo de comportamento abjeto. Resolveram se separar. Sim, isso não tinha a menor importância. Quase todos os amigos também já tinham se separado. O lance do relógio biológico já tava resolvido. O importante era casar e ter o neném, e isso já tinha sido feito. Havia um relógio emocional também, que no caso deles estava parado desde os 16 anos, mas sobre esse, ninguém mencionou nada antes do casamento. Era supérfluo.
Isabela foi morar com a mãe e passava os fins de semana com o pai, que rapidamente se casou de novo. A nova mulher já tinha outros dois filhos, ou esses dois filhos vieram depois e eram dele mesmo. Pode ser também que houvesse mais algum, ninguém sabia ao certo, tudo era muito confuso. O pai, a mãe, a madrasta, a Isabela, os outros filhos, um meio irmão, talvez mais outro, eram muitas crianças... A madrasta não gostava muito da Isabela, porque ela a fazia lembrar que não tinha sido a primeira nem a única na vida do pai dela. E isso não era justo, porque, poxa, o príncipe da Cinderela nunca teve nenhuma outra mulher na vida, e isso também deveria ter acontecido com ela. (sim, o relógio emocional da madrasta também havia parado aos 16 anos... isso parece ser uma espécie de regra geral hoje em dia).
Um dia, o pai e a madrasta tiveram uma briga feia no carro, voltando pra casa, por causa de alguma coisa muito importante, algo relacionado ao preço de um pente no supermercado, ou ao volume do toque de um celular, ou a decisão sobre qual música ouvir no radio, uma coisa sériíssma assim. Isabela se meteu e começou a chorar, e a madrasta, enfurecida vôou no pescoço dela. Era como se estivesse voando no pescoço da mãe dela, uma sensação muito boa. A pressão emocional de ter passado a tarde passeando no shopping era demais. Ela estava fora de si, mas tinha boa índole, e quando viu as lágrimas correrem pelos olhos da menina, parou, chocada consigo mesma e percebeu o absurdo que estava cometendo. Chegaram em casa e o pai levou a filha pra varanda do apartamento do sexto andar onde moravam, e como tinha boa índole também, colocou-a no colo, acalmou-a e fez os curativos que tinham que ser feitos. Acho que naquela hora o relógio emocional dos dois voltou a funcionar, e mesmo com muito atraso, eles se deram conta da responsabilidade enorme que tinham nas mãos. Procuraram a mãe da Isabela, e juntos, decidiram, que mesmo tendo feito tudo errado antes, tinham que começar a encarar as coisas de forma mais adulta dali pra frente.
Ela poderia ter morrido naquela noite. Se a madrasta realmente a tivesse asfixiado até a morte, o pai, provavelmente teria chegado em casa, cortado a rede de segurança da varanda e a atirado lá embaixo, para parecer que tinha sido um acidente. Ele nunca tinha tido que se responsabilizar por nada antes. Nunca tinha tido que responder por nenhum ato, nem arcar com nenhuma consequencia de nada que tivesse feito. Ser obrigado a chamar a polícia, reconhecer um crime e agir corretamente, assim, tão repentinamente, teria sido demais para o pobre moço que sempre teve o pai para resolver as coisas pra ele.
Isabela hoje tem sete anos. É uma menina um pouco triste, um pouco inquieta, porque não é fácil passar a vida indo de uma casa pra outra, todas as semanas. Mas, é assim com quase todas as suas amiguinhas, e no fundo, ela acredita que esteja tudo bem. Ela ainda passa os fins de semana com o pai e a madrasta. Pela rede de segurança da varanda que não foi cortada e pela qual ela não foi atirada, ela fica vendo um monte de crianças mais ou menos da memsa idade que ela, brincando no gramadinho minúsculo, cercados pelos muros altos e eletrificados do cinzento condomínio de Santana. Todas parecem que tem uma vida muito parecida com a dela. Não deveriam ter. Mas tem.
sexta-feira, março 26
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5 comentários:
Sim, o final poderia não ser perfeito, mas poderia ser diferente.
Texto muito bom!!!
Uma crítica boa à banalização do casamento e à banalização de ter filho.
A história alternativa (a rela) me deixa triste.
Ops, dislexia: rela = real.
Gostei muito do texto.
Pena que na vida real o final foi diferente...
Sempre fico muito triste quando crianças pagam o preço pelas loucuras dos pais.
Ah rá, agora saquei qual é a do Marcelo: sempre ver/esperar o lado bom da vida, das pessoas, dos bichos, da Lili... legal!
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