quarta-feira, setembro 26

Uma reforma


Helô mora em um prédio modernista construído sobre pilotis, lindo. Desses da década de 60, 70, todo elegante... o piso do térreo, nas áreas comuns, com aquelas cerâmicas pretas, quadradinhas -  simples e funcional - que os zeladores mantem sempre brilhando.  As paredes revestidas de azulejos também pequenos, com grafismos, desenhos de Athos Bulcão - ainda existem essas raridades em alguns locais do Brasil -  Brasília, alguns prédios no Flamento, no Rio de Janeiro, uns outros em Higienópolis, em São Paulo...

As áreas comuns são o prenúncio dos apartamentos grandes, confortáveis, de uma época em que a especulação imobiliária não era essa coisa delirante que é hoje, e em que o espaço interno, a divisão dos cômodos e a circulação do ar eram mais valorizados do que essas funcionalidades cafonas com nomes em inglês que temos hoje. Não, não há terraços gourmet nesse prédio. Nem lounge vip, nem pista de cooper, nada disso. Há, sim, cozinhas grandes, janelões bem ventilados e armários. Tudo remetendo a uma atmosfera de simplicidade, de funcionalidade classuda, uma pequena jóia arquitetônica encravada na cidade. Bom... era assim.

Porque hà dois anos atrás o desmonte começou. Por razões de segurança os elevadores foram trocados. Eram daqueles de caixa de madeira sóbria, botoeira de botões pretos e redondos, com acionamento mecânico e porta pantográfica dourada. No lugar deles, foram instalados esses de caixa prateada, com uma porta interna que se fecha inteira, iluminação fria e marcação de andares em telinha de cristal líquido.

- Nossa, Helô, por segurança, foi? Mas o que aconteceu? ´Despencou algum? Machucou alguém?
- Imagina, Rose, claro que não!
- Ah, então alguém ficou preso... que pânico, menina!
- Que é isso, Rose? Ninguém ficou preso não... é que eles eram muito antigos mesmo, sempre um risco, então o condomínio resolveu trocar por esses mais novos, que são muito mais seguros...
- Ah são, é? Ai, menina, sou muito boba. Sempre achei que a segurança do elevador estivesse mais relacionada ao cabo de aço que o segura do que ao revestimento dele, imagina... aliás, tomara que o condomínio tenha se lembrado de pedir pra inspecionar ou trocar o cabo também, né amiga... E vem ca.. os novos elevadores tem algum nome especial? Tipo "Elevator way" ou "Espaço vip de convivência vertical?"
- Ai, Rose, claro que não né... você é terrível...
- Só pensei, ué. Pra ficar mais chique. Hehehe.

Mas o pior ainda estava por vir - semana passada visitei Helô e vi o prédio completamente desfigurado desta vez. Os lindos ladrilhos pretos, pequenos, delicados, em perfeito estado de conservação, foram arrancados, quebrados e substituídos por porcelanato. Os azulejos que revestiam as paredes, verdadeiras obras de arte, trocados por mármore branco (o horror! o horror!). A discreta guarita do seu José, o porteiro, deu lugar a um monstrengo de vidro, enorme, bem no meio do pilotis, atravancando a passagem, uma coisa horrorosa. Aliás, até o simpático seu José trocaram! No lugar dele tava lá um moço engravatado, trancado dentro daquele aquário, e que só fala com a gente por meio de um aparelhinho que deixa passar o som por entre o paredão de vidro.

- Nem comente, Rose, até imagino o que você acha da reforma. Também fui contra, mas fui voto vencido na reunião de condomínio.
- Qual foi a alegação para os azulejos, segurança também?
- Falaram que o prédio tinha que ter um ar mais moderno, que os materiais tinham que ser mais nobres, mais condizentes com o nível dos moradores. Acredita?
- Putamerda heim, amiga...
- Pois é. Você reparou que mantiveram um quadrado com os azulejos antigos na parede, e que iluminaram, como se fosse um quadro? Idéia do síndico! Disse que isso era uma homenagem ao arquiteto que construiu o prédio e ao mesmo tempo representava a evolução necessária...
- Nem tenho palavras, Helô. Ficou horrível, viu. Horrível.
- Pois é... também achei...

E assim, queridos, mais uma vez a insensatez e a cafonice prevaleceram. Como pode?? As pessoas pegarem coisas boas, bonitas, funcionando perfeitamente, em bom estado, e marretarem tudo? Quebrarem, jogarem fora pra colocar outras no lugar, e ainda por cima piores, mais feias e caríssimas? Qual o sentido disso? A que ponto chega a estupidez da nossa classe média, tentando aparentar ser o que não é, achando que esse tipo de coisa traz algum status, alguma diferenciação? Que coisa mais ridícula!!! E ainda vem com essas desculpas esfarrapadas de segurança, de higiene, de necessidade de valorização do imóvel, o escambau. Melhor seria se reconhecessem de uma vez que na verdade o que tem é inveja do prédio do vizinho, é soberba! Gente jeca, viu, não me conformo...

E assim, mais um predinho bonito não existe mais. Mais um testemunho arquitetônico de uma época se foi. Mais uma quantidade imensa de entulho e de pó foram produzidos sem necessidade. Mais um traço de mediocridade substituiu um de elegância. E vamos ficando cada vez mais feios, mais pobres e mais ridículos. Dá tristeza, amores. Às vezes acho que não temos mesmo solução não.



8 comentários:

Unknown disse...

Concordo com cada palavra e adorei seu texto.

Moro num prédio antigo, com cara de antigo e nenhuma previsão de absurdo desses... Amém!

Inté, bjs.

Anônimo disse...

até concordo com conservação desses predios, mas esse chao preto ai eu nao gostei, mt esconde-barata e sujeira.

O Mordomo disse...

Mme Rose, até parece que eu sou sempre do contra... mas assim... não é pra se indignar tanto [e ofender tanto a tal classe média estúpida], né?

Eu pontuaria simplesmente que quem gosta de passado é museu, mas vamos lá, eu sei que a senhora espera mais de mim. E o post realmente está bem escrito, e a senhora merece um pouco mais de esclarecimento porque lhe tenho em altíssima consideração.

É legítimo o desejo de melhorar, renovar, modernizar! Se não substituem o tal elevador antigo, e daí ele despenca de uma hora pra outra causando uma tragédia, é certa a paulada na cabeça do síndico, não é verdade? Questão de segurança, sim poxa! Supor que ninguém se lembrou de trocar o tal cabo de aço é ranzizismo, heim...

E dona Rose, o que tem de tão cafona em preservar um pedaço de azulejos antigos, os únicos que eram na verdade uma obra de arte? Diga-se de passagem que o que Athos Bucão fez à época da construção do prédio foi VEN-DER, sim, pode se horrorizar, mas Athos VEN-DI-A seu trabalho. Pra comer, pra morar, pra viver, pra ser classe média até, eu diria. Veja bem! Ele vendia. Era um trabalho. E seu estilo ganhou status de obras de arte faz pouquíssimo tempo, afinal hoje em dia é que é chique [e pedante] essa coisa retrô num é? Eu acho. A senhora acha que não. Mas tudo bem, é questão de opinião.

Todo o transtorno, entulho, e quantidade de pó, não foram, ao meu ver, sem necessidade. O traço de mediocridade de hoje, será o grito retrô de amanhã! A vida passa, as coisas mudam, e é difícil mesmo aceitar mudanças naquilo que gostamos tanto. Eu vejo que a senhora gosta dessa coisa retrô, de história e tal. Mas veja, viver em sociedade é isso: vários foram ouvidos, a maioria venceu.

Então assim... não venha dizer que estamos ficando mais feios, mais pobres e mais ridículos. Tudo aconteceu perante um acordo democrático. Uns gostaram, outros não. É a vida. Daí a colocar toda uma sociedade num balaio de gente estúpida e medíocre é, sim, ofensivo.

Dedé disse...

Rose, eu adorei seu post. Mas o comentário do mordomo me fez pensar. Eu acho que a gente deve preservar sim. Acho que deveríamos ter uma política pública de preservação (que hoje em dia é bem tímida). Gente especializada, contratada para definir se aquele edifício tem valor histórico ou não e fazer leis de proteção e tudo mais, inclusive para prédios privados. Mas no momento, não funciona assim e em um edifício privado, os moradores tem direito de mudarem o que quiserem/precisarem, se for decidido conforme as leis do condomínio. Se fosse uma casa, o morador/dono faria com ela o que quisesse e não precisaria ter a permissão dos outros, como é num condomínio, a maioria vence.
Enfim, acho que tudo é um equilíbrio. Não podemos destruir o passado só porque "quem gosta de passado é museu", mas também não podemos reprimir o progresso. E é difícil chegar nesse meio termo!

Saulo disse...

Eu acho que o Brasil ainda tem grandes lições a aprender no que diz respeito à preservação arquitetônica. Enquanto em vários lugares do mundo consegue-se preservar prédios ou monumentos lindos, que são heranças de várias passagens históricas, aqui isso não é feito de forma satisfatória. A prova disso é o centro do Rio em comparação a Lisboa.

Rose Foncée disse...

Além da questão arquitetônica eu procurei chamar mais atenção para o lado do desperdício, do pouco caso com a produção de lixo, com os nossos recursos finitos, essa sim a grande estupidez da nossa sociedade. Minha ofensa à classe média (à qual pertenço, e que portanto entendo, reconheço as verdadeiras motivações, me sentindo à vontade para criticar então), é mais a esse consumo desenfreado, a essa ânsia por reformas, trocas, atualizações, por coisas que no fundo não significam nada, coisas de que não precisam. Fico aqui só visualizando os moradores do prédio indo às compras com suas ecobags, atrás de verduras orgânicas, tendo que desviar da montanha que entulho que eles acabaram de legar ao planeta sem a menor necessidade. Muita hipocrisia e muita estupidez, não há outra palavra.

Dedé tem toda a razão ao dizer que cabe aos condôminos fazerem a mudança que quiserem, fazer a trapalhada que quiserem. Quando a gente discorda, lamenta. E, no meu caso, exponho meu ponto de vista, acho que é um direito de qualquer pessoa. No edifício em questão tudo funcionava direitinho, estava tudo em perfeitas condições, não havia infiltração, peças quebradas, nada. Nâo há ninguém que vá me convencer que é natural alguém ir lá, pegar uma marreta e destruir metros e metros e metros de pisos e azulejos bons, em perfeito estado só pra colocar outro - por luxo, por status, por aparência. Como você mesmo diz, mordomo - desculpe.

Pra esclarecer - o que achei horrível foi o mármore na parede inteira. Sempre achei mármore brega, não tem jeito. O azulejo que eles deixaram lá como homenagem na verdade revestiam as paredes todas. Foi realmente um pecado arrancarem.

No mais, é claro que Athos Bulcão trabalhava e vendia seu trabalho, né. Isso não faz com que seu trabalho importantíssimo mereça ser menos reconhecido ou preservado. Assim como um Picasso ou um Di Cavalcanti continuam sendo obras preciosas, mesmo que seus autores dependessem deles para sobreviver.

Não dá mesmo pra reprimir o passado e sei que daqui a alguns anos a arquitetura que eu hoje classifico como horrenda vai ter seu valor, vai ser um testemunho historico da nossa época. Perfeito. Só que esses diversos testemunhos tem que conviver uns com os outros. Uma mesma cidade terá os testemunhos de todas as épocas em que viveu e se desenvolveu. Nâo dá pra achar correto a prática de uma escola desmontar a outra. Tudo se perde assim... Lisboa, que o Saulo citou, é um excelente exemplo - uma cidade preservada, com construções contemporâneas belíssimas convivendo lado a lado. São Paulo, por incrível que pareça com o Copam a poucos metros do Teatro Municipal. A pirâmide de vidro em frente ao Louvre... são tantos os exemplos, tantos testemunhos de tantas épocas... mas ok, no fim reconheço mesmo, que em se tratando de edifícios privados, cabe aos proprietários decidir o destino, se não houver nenhuma proteção por parte do patrimônio histórico. O que, repito, não me impede de lamentar...

Anônimo disse...

Já eu prefiro tudo "muderno", gosto muito do novo, morar em um ap de 3 dormitórios de 84 mt em quartos mínusculos parece um horror mas acho bem confortável.
Obviamente que tive que chamar um decorador pra fazer todos os móveis, que nada entrava...rs.

Anônimo disse...

Nao conheço muito o mundo, mas por onde ja andei cito simplesmente Paris, que uma cidade com arquitetura toda antiga, as coisas mais maravilhosas foram feitas no tempo de Napoleão. É claro que to falando da parte mais cara de Paris, aquela que é pra turista ver. Mas muita gente viaja 10hs de avião pra vislumbrar essas "antiguidades" e nao dá valor pras coisas que tem aqui. Outro lugar por onde andei assim foi Veneza. A cidade é só charme e as casas dos moradores sao todas tombadas, ngm pode mudar. eu falar isso ateh me incomoda pq eu prefiro morar em prédios novos, mas eu tb sei reconhecer o charme dos antigos.
e ngm nunca disse que ARTE tem que ser graça. os artistas vivem de sua arte. Van Gogh morreu pobre, nem por isso devemos menosprezar seus quadros pq no tempo dele nao tinha valor.