segunda-feira, setembro 26

Onde mora o meu coração selvagem



Até muito pouco tempo atrás, poucos anos, eu ainda tinha um quarto na casa dos meus pais. Em alguns períodos da vida eu morava longe e ia visita-los com frequência. Em outros, por um ou outro motivo, voltava a morar com eles, foram muitas idas e vindas na minha vida, e meu quarto sempre estava lá. Igualzinho como era na adolescência. Mesmos móveis, os mesmos adesivos grudados no vidro da janela... com o passar dos anos, foram mudando os hábitos da casa, tão devagar que a gente nem chegava a perceber... os irmãos mais novos que, assim como eu, foram saindo para estudar, a aposentadoria e depois a doença de meu pai, minha mãe envelhecendo aos poucos, o canil transformado em orquidário, um gato que sumiu, outros dois que nasceram. Mais um poodle para aquecer os pés de meu pai nas suas sonecas vespertinas, uma rachadura que foi aumentando, ficando lá, sem conserto, uma barra de ferro instalada no chuveiro para que eles não escorregassem durante o banho, um eventual móvel trocado, tudo tão devagar, tão natural, acontecendo no decorrer dos anos, com a vida passando na velocidade em que deveria mesmo passar... e só meu quarto lá, igualzinho, esperando sempre por mim, não importando se eu retornava para lá todas as tardes ou só duas vezes em um ano inteiro.

A casa de meus pais ficava em uma pequena cidade de uma região agrícola do sul do país. Por algum acaso engraçado, qualquer que fosse o lugar para onde eu me mudasse, o ônibus para lá sempre chegava ao amanhecer. Eu normalmente embarcava à noite, e chegava com o nascer do sol em uma parada na estrada que ficava a uns vinte quilômetros da minha cidade. Era sempre meu pai que ia me buscar, nas manhãs invariavelmente frias do sul. Eu ficava esperando por ele naquele lugar muito singelo. A lanchonete, o posto de gasolina, a estrada à frente e os campos cultivados na sequência, à perder de vista... muitas vezes eu vi o sol nascer sentada em um banco na beira daquela estrada. Depois, o trajeto para casa, a estradinha entre as plantações de cana de açucar, de trigo, de milho, dependendo da época do ano, da intensidade da geada, dos negócios feitos com a terra. E então, chegar na cidadezinha vazia, entrar em casa, colocar a mala no meu quarto, e ir tomar café na cozinha com a minha mãe, repetindo o ritual mais familiar de todos, mais reconfortante, um dia novo recomeçando na casa dos meus pais. Horas de conversa entre xícaras fumegantes, pedaços de queijo caseiro, pão fresquinho, alguém que passa na rua e se detém para dar um alô, uma sucessão de tarefas simples e corriqueiras para cumprir. Qualquer que fosse a fase da vida, qualquer que fosse o problema, sempre haveria um ônibus saindo à noite. Um ônibus que me deixaria naquela parada ao amanhecer, onde meu pai apareceria para me buscar e me levar para casa. Para o meu quarto da adolescência. Para o amanhecer na casa onde as coisas mudavam tão devagar que as vezes nem percebíamos que mudavam.

Hoje meu pai não está mais aqui. Minha mãe continua na mesma cidade, mas não mora mais na mesma casa. Jà não tenho mais meu quarto de adolescência, e moro tão longe que não é mais possível pegar um ônibus para chegar até lá. Já não há mais conforto, nem a sensação de estar absolutamente segura e protegida dos problemas, dos erros, dos dilemas e do tempo. Mas ainda assim, são as manhãs daquela região, os bancos daquela parada de ônibus e as pequenas estradinhas no meio daquelas plantações que guardam as minhas raízes mais verdadeiras, os meus momentos de trégua, e quase todas as minhas respostas. Longe de qualquer lugar importante, de qualquer cidade grande, é nesse interior próspero, mas profundamente simples, caipira mesmo, que está o meu coração selvagem. De verdade, no fundo mesmo, eu ainda sou aquela moça sentada no banco, com a mala ao lado, olhando a lavoura a perder de vista atrás da estrada, enquanto o dia amanhece. Só que agora meu pai não vai mais aparecer pra me buscar. E sendo assim, vou deixando-me ficar aqui indefinidamente. O dia nunca chegará a nascer completamente, mas a noite também já não é mais assim, tão escura. E esse lugar é meu. Só meu. Nâo há absolutamente nada o que temer.

8 comentários:

Dedé disse...

Que texto lindo! :)

Jujuba disse...

Como os textos da Rose me transportam para lugares que nem conheço... Já sei que o texto é seu na segunda linha. Adoro!

Deri Fontes disse...

Concordo com a Jujuba. É cada coisa linda e que toca de um jeito que quando vejo que o texto é dela os olhos já enchem d'agua! Amo do fundo do coração quem tem poesia no viver (sem rima como a vida as vezes é).

Anônimo disse...

Lindo texto, Rose. Me vi na tua história e me emocionei...
Gil

Tereza disse...

Chorei....que lindo!

Anônimo disse...

Chorei. Parabéns pelo lindo texto.

Holandesa disse...

Sentí vc me levar aquele banco. Sentar do teu lado e senti a segurança que não mais existe... Lindo texto. E reconhecível... (Tb não tenho mais meu pai e nem a minha casa de adolescência para voltar atrás...)

lili cheveux de feu disse...

holandesa!!! quanto tempo, mulher!!! como estão as coisas? beijo.