Vira e mexe aparece alguma reportagem com declarações de moradores reclamando da grande quantidade de cães abandonados em algumas regiões da cidade, as chamadas zonas de descarte. As reivindicações são sempre para que a Prefeitura faça alguma coisa, para que alguma ONG faça alguma coisa, mas em outras palavras significa apenas “tirem esses cães das minhas vistas, não me importo com o que será feito com eles, apenas não quero que eles me incomodem”. Ninguém se interessa em descobrir por que os cães estão ali e no que fazer para evitar que eles continuem aparecendo.
Dia desses eu estava parada com o meu carro num semáforo e um rapaz se aproximou sugerindo uma limpeza de para-brisa em troca de algumas moedas. Não quis que ele limpasse. Não quis baixar o meu vidro e me expor. Estava sozinha no carro e a presença dele me incomodava pelo medo e o preconceito que estamos acostumados a sentir. Eu poderia ter telefonado para a Guarda Municipal e denunciado a presença daquela pessoa naquele local – e digo, envergonhadamente, que pensei em fazê-lo: isso resolveria o meu problema. Resolveria o MEU problema. E, afinal, o que a gente realmente quer é resolver o nosso problema, não importa a que custo.
Quem quer pensar no que seria feito com aquela pessoa se ela fosse retirada dali pelas autoridades? Quem quer pensar em por que ela estava naquela situação, em como é a vida daquela pessoa, pensar em qual é a nossa parcela de culpa pelo fato daquele semelhante estar ali? E, principalmente, quem quer pensar no que efetivamente poderia ser feito para ajudar aquele ser humano? Quem respondeu a essa última questão com um “deixa-lo limpar o meu para-brisa e entregar-lhe algumas moedas o ajudaria”, perdeu 30 pontos. Dar umas moedas é a [falta de] atitude mais egoísta que você poderia tomar. Com algumas moedas você se livra do incomodo de ter sido abordado por um desconhecido numa situação degradante e imagina estar pagando a sua parcela de culpa por deixa-lo naquela situação. Mas e aí? Fez a sua boa ação do dia, parabéns?
E aí você que já está com o para-brisa limpinho e já ganhou uma estrelinha no caderninho de Deus por ter sido tão compassivo por menos de R$ 2, chega à sua casa e vê alguns cães morando na sua rua. Eles te causam problemas, pois querem sobreviver e rasgam o seu lixo; querem se defender e latem em frente ao seu portão; e é óbvio que o seu lixo dentro de um saco e seus ouvidos poupados da voz desses seres inferiores são muito mais importantes que a vida deles. Você quer que eles saiam de perto de você, não importa se irão passar o resto de suas vidas enjaulados – assim como os criminosos, embora os cães não tenham nem mesmo cometido algum crime. No fim você é exatamente como a pessoa que lhe causou esse transtorno: não quero esse problema para mim, quero passa-lo para frente. Acontece que os problemas não são resolvidos em cárceres: os problemas são escondidos em cárceres.
Quem quer pensar em por que estes cães estão na rua, pensar em qual é a nossa parcela de culpa por eles estarem naquela situação? E, principalmente, quem aí quer pensar no que efetivamente poderia ser feito para ajudar a resolver a situação? Veja bem, não falo em resolver o SEU problema, mas resolver todo o problema: o seu; o dos seus semelhantes irresponsáveis que abandonaram os cães; o problema dos cães (sim, espantosamente eles são seres vivos e também têm problemas a serem resolvidos); da falta de programas educacionais e de políticas que ensinem seres humanos a conviver com outros animais e punam aqueles que praticam atos de crueldade; resolver a nossa falta de ética; resolver os problemas das pessoas que dedicam a vida para cuidar de animais abandonados (leia-se: tentam tratar alguns sintomas resultantes do caos que envolve toda a questão). Todas essas situações não resolvidas se convergem a uma mesma palavra: egocentrismo.
Não há mais espaço em nossas vidas. São muitas novelas, muitas marcas de shampoo, muitas redes sociais, muitos sofás macios, muitas festas com muitas pessoas vazias... São tão poucos olhares, tão pouco interesse, tão pouco envolvimento, tão poucas ações, poucos abraços, carinhos, atenção, preocupação, tão pouco “amai uns aos outros”. Tão pouco amor. Reivindiquem amor! Sintam isso, doem isso. Doem uma visão mais ampla, doem seu tempo para fazer algo que possa transformar as vidas à sua volta, que possa efetivamente trazer alguma solução justa para todos os envolvidos e não apenas para você.
Enxergar o outro é amar. Preocupar-se com o outro é amar. Agir para fazer o bem ao outro é amar, é libertar-se do seu próprio cárcere de concreto egoísmo. Abaixo os cárceres privados. Vamos para a rua.
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[Escrevi isso hoje pela manhã, logo após ler mais uma reportagem com moradores reclamando da presença de cães de rua num bairro da minha cidade.]
sexta-feira, junho 7
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