quinta-feira, outubro 6

Um homem de bem



Doutor Ivan foi meu colega de escola durante muitos anos, quando éramos muito crianças. Era gordinho, esquisitão, inteligentíssimo, não possuía nenhum atributo físico interessante e, desde muito novo, extremamente generoso. Falava sozinho, com as folhas e com o vento, era muito estudioso e por conta disso, vítima de brincadeiras, escárnio e até alguma agressão, coisas que hoje são conhecidas por bullying. Ivan nunca pareceu se importar. Sempre amável com todos, muito educado, sorridente com quem o abordava, gentilíssimo, com a voz sempre baixa e pausada, um pequeno gentleman, desde os dez anos de idade.

Não foi surpresa para ninguém ele ter sido aprovado muito novo, entre os primeiros lugares, na federal de medicina. O garoto gordinho virou um homem grandalhão, desengonçado, mas soube manter o olhar sonhador dos tempos em que falava sozinho no pátio da escola e anos mais tarde, também não causou surpresa a ninguém a notícia de seu casamento com uma moça doce e tímida, também médica, como ele. Ivan se especializou em oncologia infantil. Talvez a especialidade mais difícil e a que mais exija de um profissional. Não consigo imaginar nada que possa ser mais destroçante emocionalmente do que cuidar de pequenos anjinhos condenados precocemente e sofrendo as dores mais profundas que possam existir. Por outro lado, não consigo imaginar ninguém melhor para lidar com essas crianças, com famílias desesperadas, do que o competente e bondoso Doutor Ivan.

No primeiro reencontro da nossa turma de escola, muitos anos depois, foi ele que organizou tudo. Ao ligar para ele, depois de quase uma década de afastamento, para tratar de detalhes sobre depósito de dinheiro, local, etc, ele imediatamente reconheceu minha voz – orgulhoso, disse que eu já era a oitava que estava ligando, e que ele até agora havia conseguido reconhecer a de todos; e ficava feliz por perceber que ainda mantínhamos algo da nossa infância. Levou para o encontro o uniforme escolar que usávamos, antigas apostilas, a mochila com o emblema da escola, e nos fez lembrar de tempos felizes, aliviou um pouco as nossas angústias adultas, as nossas dores do amadurecimento. Exatamente da mesma forma como, provavelmente, fazia com seus pequenos pacientes doentes e desenganados.

Mais uma década se passou, e dessa vez eu não pude ir ao novo encontro da minha turma. Mas soube, depois, que o Doutor Ivan resolveu dar uma guinada na sua vida. Ele não aguentou o cotidiano de convívio com as crianças doentes. Por mais generoso e preparado que fosse, tanta dor, todos os dias, o estava matando por dentro. Fez outra faculdade, e hoje trabalha apenas na parte administrativa do mesmo hospital em que trabalhava como médico. Abriu mão do heroísmo, do reconhecimento, dos elogios, do status, do alto salário para poder continuar vivendo com um pouco mais de paz, de serenidade, sem com isso deixar de continuar trabalhando naquilo em que acredita.

Imagino que deva ser extremamente difícil desistir de uma carreira de sucesso, abandonar o status de uma profissão reconhecida e começar de novo em um posto mais humilde, desempenhando uma função menos valorizada. Penso em como deve ter sido difícil admitir que era demais para ele, reconhecer que ele não conseguia lidar com tanto sofrimento, e desistir de lutar com as próprias emoções, e é por isso que admiro tanto meu amigo Ivan. Para mim, a decisão de ser feliz, de reconhecer uma limitação, de buscar um caminho melhor e não necessariamente o mais brilhante, só faz aumentar toda a nobreza que sempre atribuí a ele.

Daqui a dez anos, quem sabe, volto a encontrá-lo em alguma nova reunião de turma. E espero encontrar um senhor feliz, cheio de filhos (sei que ele já tem três!!), e com a mesma generosidade e delicadeza de sempre. Provavelmente será ele que nos fará voltar a ser, por um dia, aquelas crianças felizes que já fomos há muito tempo atrás. Porque afinal, passados tantos anos, eu só consigo pensar no quanto teria sido bom para nós se, como ele, também tivéssemos passado mais tempo buscando a felicidade fazendo o bem, ignorando agressões, praticando a gentileza e conversando sozinhos... com as folhas, com o vento.

2 comentários:

Thiago disse...

Rose,
Como sempre seus textos dispensam comentários!!

O Mordomo disse...

Se juntar os posts da Rose, dá pra fazer um livro bem bacana de auto-ajuda. Sem deboche.