quarta-feira, dezembro 14

O depoimento e a tempestade

Ontem fui ao fórum, prestar depoimento. Anos atrás, fui ao mesmo tempo testemunha e vítima de um fato que detesto relembrar. Foi em outra cidade, e meu depoimento foi colhido por carta precatória. A hora marcada era 14h00 e eu saí do trabalho com uma hora de antecedência. Como o tempo estava nublado e fresco, resolvi caminhar a distância de pouco mais de 1 km... Fui bem devagar, parei pra tomar um suco, comprei um chocolate, e ainda cheguei uns 20 minutos antes.

- Pode aguardar aí fora, moça, a gente chama pelo nome...

Passaram-se os 20 minutos, e mais 20, e mais 20. Já eram quase 3 horas quando eu entrei na sala, me apresentei, jurei dizer a verdade, ouvi a denúncia inteirinha, em todos os seus detalhes, vieram as lembranças de um dos piores episódios que já vivi, e então comecei a responder tudo o que me era perguntado pelo promotor. Perguntas dentro de perguntas, dentro de perguntas... detalhes dos quais eu não me lembrava mais direito, mais perguntas... O juiz e o promotor querendo fechar aquilo que não tinha como ser fechado; concluir o que não tem como ser concluído.

- Como a senhora conseguiu manter a calma?
- Como se responde a isso, doutor? Não sei. Sei que fiquei calma.
- A senhora ficou com sequelas?
- Não sei, doutor. Acordo amedrontada às vezes. Vou checar se a porta está trancada no meio da madrugada...isso é sequela?
- Se isso for resultado do fato, sim.
- Eu não sei se isso é resultado do fato. Eu só demoro pra dormir. E acordo sobressaltada, doutor. Penso em muitas coisas, mas não fico querendo associar isso a uma coisa específica.
- Seria bom se a senhora fosse capaz de precisar.
- Inclusive para mim, doutor. Inclusive para mim. Mas a verdade é que não sou capaz. Leigamente eu diria que sim. Mas pode ser que não seja. Honestamente não sei.

O transcurso do depoimento foi me fazendo relembrar coisas horríveis. E me causou aquela sensação que ninguém nunca precisou tão bem como Marcelo Nova em uma canção que eu nem sei o nome (...esse calor insuportável não aquece o frio da alma...).

Tudo acabado – A senhora pode assinar aqui, por favor. Está dispensada.
(“A justiça agradece sua colaboração.” “Sentimos muito pelo que aconteceu.” “Deseja um copo d’água?” “Muito obrigado mais uma vez” – Não, claro que essas frases não foram ditas. Na minha cabeça deveriam ter sido, mas não foram. Somente essa: “Está dispensada”. O “boa tarde” fui eu quem disse, antes de sair – e nem reparei se houve resposta).

Saí do fórum com a alma gelada; caia uma chuva fraca, e eu percebi que estava sem um tostão na bolsa e que não havia nenhum banco 24 horas nas proximidades. Impossibilitada de pegar um taxi, comecei a caminhar devagar, de volta ao trabalho, com a cabeça latejando de dor. No meio do caminho, a chuva aperta, e muito. Uma ventania vira minha pequena sombrinha de bolsa ao contrário, como em cenas de comédia... completamente encharcada, mudei o rumo e fui para casa. Era um pouco mais longe, mas eu já estava ensopada mesmo, não fazia muita diferença. No caminho, pessoas encolhidas nos pontos de ônibus. Gente na calçada levando banhos de água suja dos carros que passavam pelas poças d’água formadas no asfalto. Gente que enfrentava a chuva porque não tinha mesmo outra alternativa. Para quem aquilo, que era uma eventualidade para mim, era rotina. Pessoas andando encolhidas, com as sombrinhas muito próximas ao corpo, tentando, em vão, se proteger do mau tempo. Eu sentia o trânsito indiferente aos meus sapatos encharcados, como havia acabado de sentir a justiça indiferente. E ao atravessar a rua alagada, enfiando o pé numa poça que me fez afundar até a canela na lama, decidi que não me deixaria humilhar. Soltei o cabelo, e caminhei o mais devagar que pude sob a tempestade, como uma louca. Ignorei as marquises, não fugi para os fundos das calçadas, não apertei o passo, não protegi o rosto, não abaixei a cabeça, não me preocupei com a transparência da blusa, nada disso. Caminhei como se estivesse sob o sol, e ao chegar em casa, mais de meia hora depois, me senti completamente lavada, limpa, quase exultante. A dor de cabeça havia desaparecido completamente. Pedi para que minha mãe fizesse um café, tomei um banho longo, liguei para o chefe avisando que não retornaria mais e saí para um belo passeio, aproveitando o finzinho da tarde e o fim da chuvarada.

Muito mais tarde, no meio da noite, acordei com um barulhinho qualquer, como de costume. Fui checar a porta, como de costume e me perguntei se aquilo era consequência do que havia me acontecido anos antes. Não consegui concluir.

- Não consigo, doutor. Não sou capaz. Não há pergunta, depoimento ou investigação que possam me levar a concluir isso. Acordo sobressaltada, e é isso.

Conformada com o insucesso, voltei a me deitar. Um cachorrinho ressonava na caminha. O outro pulou na cama e se aninhou em meus pés. Cheri dormia tranquilo, de lado, com a expressão de sonhos lindos. A casa mergulhou na tranquilidade e na escuridão, e a porta estava, definitivamente, bem trancada.

E até que os passarinhos e uma buzina longínqua anunciassem que o nascer do dia estava próximo, não houve mais nenhum sobressalto nessa noite.

5 comentários:

Guga disse...

Nossa, Rose... não vai contar o que foi o episódio não? Fiquei curioso, confesso.

Fique bem!

Bjs...

Ana disse...

É, realmente tentei segurar a curiosidade, mas não deu. Conta Rose...

Rose Foncée disse...

Eu conto, amores... eu conto.

Jujuba disse...

Eu trabalho em justiça e imagino logo coisas escabrosas. Tudo de bom pra ti, Rose.

Anônimo disse...

Sim, é verdade... fiquei curiosa agora... conta, vai?