- Rose, dá uma reforçada na grana esse mês! Tá foda, chovendo sem parar, ninguém vai na feirinha!
Essa é Titia em Apuros. A feirinha a que ela se refere é uma feirinha de artesanato que acontece lá na pequena cidade turística onde ela mora, uma praia do Espírito Santo. E a grana é um dinheirinho que minha mãe e eu mandamos para ela todo mês para ajudar nas despesas.
Titia tem uma casa semiacabada, modesta, em um bairro de periferia, que ganhou de um amigo. No começo, ele começou a construção e deixou ela ir morando por lá. Depois, a vida mudou, ele se mudou pra longe, mas o imóvel valia tão pouco que ele acabou passando para o nome dela e deixou pra lá. Como pagamento, ela conseguiu que uma outra amiga fizesse o mapa astral dele, de graça. Fora isso, Titia tem livros, poucos móveis e 18 gatos. É taróloga e de uns anos pra cá, aprendeu a fazer crochê e faz peças de decoração que vende diariamente na feirinha de artesanato. E só.
Desde nova ela sempre foi assim. Nunca teve nada, nunca quis ter. Não tem apego, não gosta de acumular. Ainda adolescente, sumia por dias... deixava a família toda louca e um tempo depois chegava uma cartinha... de Porto Alegre, ou de Salvador – “Conheci um cara muito legal, é músico! Vim com ele aqui pra Salvador, estamos morando em Itaparica e a vida é ótima”. “Mas, Titia, você está bem, está passando necessidade? Estão vivendo de que?” “Tudo sob controle, o universo conspira a favor... tem muito peixe aqui, rola uma pesca, os amigos estão sempre por perto, ajudam, um pouco daqui, a gente vai se virando”. Tempos depois ela voltava, depois de meses, como se nada tivesse acontecido... no decorrer da vida entrou e saiu de religiões exóticas, fez e desfez amizades, namorou homens, mulheres, sempre perdidamente apaixonada, abandonava tudo pelo novo amor e lá ia ela...
Há uns quinze anos atrás parecia que ela tinha finalmente se enquadrado. Engatou um romance firme com uma funcionária pública no Rio, mudou-se para o apartamento dela, na Tijuca, e tudo parecia bem... mas, sabem como é, né...”Rose, não dava, cara! Não dava! Eu gosto dela mas ela é uma paranoica obssessiva! Imagina você – vai ao supermercado toda semana, e quando chega em casa, fica dobrando os saquinhos de plástico para reutilizar depois! Só fica falando em comprar armário, sofá, trocar a televisão – porra – a televisão dela era ótima e ela querendo trocar, a mulher é doida!! Não deu, Rose, não deu...”
E assim, foram passando os anos, e hoje ela vive assim... sem um tostão. Sem nada, absolutamente nada... é incrível, sem nada mesmo! Abriu uma poupança para que mamãe e eu pudéssemos mandar a graninha mensal – para ajudar na ração dos gatos. Ela não precisa mais que isso. “Porra, Rose, imagina você! Tem dia que não tem um grão de arroz pra colocar na panela! Hahahahahahahahahahahahaha! Mas a vizinhança é gente boa, rola uma ajudazinha!” Teve o dia em que ela foi sacar o dinheiro no banco, e esqueceu o cartão. Não tinha dois reais nem pra pegar a van de volta. “Porra, Rose, hahahaha... magina, sem um puto! O pessoal da van teve que pagar pra mim, tu acredita?!”
Fico pensando em como seria uma vida assim... sem dinheiro, mas sem dívidas, sem contas a pagar, sem obrigações, sem imposto de renda, sem cartão de crédito, sem vínculos materiais... a vida vivida no dia, no exato momento. A verdade é que Titia em Apuros vive o hoje. Ela precisa dos amigos, dos namorados (agora está em fase hetero e no alto dos seus quase 60 anda pegando uns gatinhos de 25...), do Tarô, dos gatos, e do indispensável para a sobrevivência hoje. A vizinhança é gente boa, então no fim das contas não falta nada. A feirinha garante a conta da água e da luz (quando calha do bom movimento ser no dia do vencimento das contas, porque é claro que jamais passará pela cabeça de Titia que, se a conta vence amanhã, o dinheiro que ela tem hoje tem que ser guardado para isso, imagina!), uma cervejinha nos fins de semana, e de vez em quando, algum evento esotérico em alguma outra cidade, um novo livro, e muitos acessórios (as roupas ela sempre ganha de alguém, mas nos acessórios sempre capricha... adora coisas de cigana, presilhas, brincos grandes e muitas pulseiras).
Prestando atenção na vida dela, a gente muda até o conceito de “ter” e “não ter”. Quantas vezes a gente “não tem” dinheiro e vai às compras assim mesmo. Para Titia, “não ter”, é não ter mesmo! Ela “tem” dinheiro quando abre a bolsa e o dinheiro está lá dentro, não importa se a luz vai vencer amanhã, se há uma obrigação futura... ali, naquela hora, ela "tem", e se tem alguém precisando do lado dela ela dá. Simples assim. Amanhã é outro dia.
É uma vida que não serviria para mim, jamais. Mas não posso negar, que nessa vida, nunca vi Titia preocupada, deprimida, ou muito chateada... sou grata a ela por muitas coisas, aprendi muito com ela já – mas acho que o principal foi crescer tendo um certo convívio com esse modo de vida. Tendo experiências, situações e problemas que normalmente são experiências, situações e problemas “dos outros” dentro do meu próprio meio. Tão diferente da vidinha de supérfluos, sonhos burgueses e necessidades fabricadas da classe média de minha família mais próxima. Titia me mostrou, e me motras até hoje, que é possível ser completamente livre. E mostra, inclusive, o preço a se pagar pela liberdade. Não fosse por tantas outras coisas, bastaria isso.
E agora vamos lá mandar uma graninha extra pra Titia. Os gatos devem estar precisando. Tomara que a chuva passe logo lá pros lados do litoral do Espírito Santo...
Essa é Titia em Apuros. A feirinha a que ela se refere é uma feirinha de artesanato que acontece lá na pequena cidade turística onde ela mora, uma praia do Espírito Santo. E a grana é um dinheirinho que minha mãe e eu mandamos para ela todo mês para ajudar nas despesas.
Titia tem uma casa semiacabada, modesta, em um bairro de periferia, que ganhou de um amigo. No começo, ele começou a construção e deixou ela ir morando por lá. Depois, a vida mudou, ele se mudou pra longe, mas o imóvel valia tão pouco que ele acabou passando para o nome dela e deixou pra lá. Como pagamento, ela conseguiu que uma outra amiga fizesse o mapa astral dele, de graça. Fora isso, Titia tem livros, poucos móveis e 18 gatos. É taróloga e de uns anos pra cá, aprendeu a fazer crochê e faz peças de decoração que vende diariamente na feirinha de artesanato. E só.
Desde nova ela sempre foi assim. Nunca teve nada, nunca quis ter. Não tem apego, não gosta de acumular. Ainda adolescente, sumia por dias... deixava a família toda louca e um tempo depois chegava uma cartinha... de Porto Alegre, ou de Salvador – “Conheci um cara muito legal, é músico! Vim com ele aqui pra Salvador, estamos morando em Itaparica e a vida é ótima”. “Mas, Titia, você está bem, está passando necessidade? Estão vivendo de que?” “Tudo sob controle, o universo conspira a favor... tem muito peixe aqui, rola uma pesca, os amigos estão sempre por perto, ajudam, um pouco daqui, a gente vai se virando”. Tempos depois ela voltava, depois de meses, como se nada tivesse acontecido... no decorrer da vida entrou e saiu de religiões exóticas, fez e desfez amizades, namorou homens, mulheres, sempre perdidamente apaixonada, abandonava tudo pelo novo amor e lá ia ela...
Há uns quinze anos atrás parecia que ela tinha finalmente se enquadrado. Engatou um romance firme com uma funcionária pública no Rio, mudou-se para o apartamento dela, na Tijuca, e tudo parecia bem... mas, sabem como é, né...”Rose, não dava, cara! Não dava! Eu gosto dela mas ela é uma paranoica obssessiva! Imagina você – vai ao supermercado toda semana, e quando chega em casa, fica dobrando os saquinhos de plástico para reutilizar depois! Só fica falando em comprar armário, sofá, trocar a televisão – porra – a televisão dela era ótima e ela querendo trocar, a mulher é doida!! Não deu, Rose, não deu...”
E assim, foram passando os anos, e hoje ela vive assim... sem um tostão. Sem nada, absolutamente nada... é incrível, sem nada mesmo! Abriu uma poupança para que mamãe e eu pudéssemos mandar a graninha mensal – para ajudar na ração dos gatos. Ela não precisa mais que isso. “Porra, Rose, imagina você! Tem dia que não tem um grão de arroz pra colocar na panela! Hahahahahahahahahahahahaha! Mas a vizinhança é gente boa, rola uma ajudazinha!” Teve o dia em que ela foi sacar o dinheiro no banco, e esqueceu o cartão. Não tinha dois reais nem pra pegar a van de volta. “Porra, Rose, hahahaha... magina, sem um puto! O pessoal da van teve que pagar pra mim, tu acredita?!”
Fico pensando em como seria uma vida assim... sem dinheiro, mas sem dívidas, sem contas a pagar, sem obrigações, sem imposto de renda, sem cartão de crédito, sem vínculos materiais... a vida vivida no dia, no exato momento. A verdade é que Titia em Apuros vive o hoje. Ela precisa dos amigos, dos namorados (agora está em fase hetero e no alto dos seus quase 60 anda pegando uns gatinhos de 25...), do Tarô, dos gatos, e do indispensável para a sobrevivência hoje. A vizinhança é gente boa, então no fim das contas não falta nada. A feirinha garante a conta da água e da luz (quando calha do bom movimento ser no dia do vencimento das contas, porque é claro que jamais passará pela cabeça de Titia que, se a conta vence amanhã, o dinheiro que ela tem hoje tem que ser guardado para isso, imagina!), uma cervejinha nos fins de semana, e de vez em quando, algum evento esotérico em alguma outra cidade, um novo livro, e muitos acessórios (as roupas ela sempre ganha de alguém, mas nos acessórios sempre capricha... adora coisas de cigana, presilhas, brincos grandes e muitas pulseiras).
Prestando atenção na vida dela, a gente muda até o conceito de “ter” e “não ter”. Quantas vezes a gente “não tem” dinheiro e vai às compras assim mesmo. Para Titia, “não ter”, é não ter mesmo! Ela “tem” dinheiro quando abre a bolsa e o dinheiro está lá dentro, não importa se a luz vai vencer amanhã, se há uma obrigação futura... ali, naquela hora, ela "tem", e se tem alguém precisando do lado dela ela dá. Simples assim. Amanhã é outro dia.
É uma vida que não serviria para mim, jamais. Mas não posso negar, que nessa vida, nunca vi Titia preocupada, deprimida, ou muito chateada... sou grata a ela por muitas coisas, aprendi muito com ela já – mas acho que o principal foi crescer tendo um certo convívio com esse modo de vida. Tendo experiências, situações e problemas que normalmente são experiências, situações e problemas “dos outros” dentro do meu próprio meio. Tão diferente da vidinha de supérfluos, sonhos burgueses e necessidades fabricadas da classe média de minha família mais próxima. Titia me mostrou, e me motras até hoje, que é possível ser completamente livre. E mostra, inclusive, o preço a se pagar pela liberdade. Não fosse por tantas outras coisas, bastaria isso.
E agora vamos lá mandar uma graninha extra pra Titia. Os gatos devem estar precisando. Tomara que a chuva passe logo lá pros lados do litoral do Espírito Santo...
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