Mamãe levou mais um tombo horrível, e está toda inchada, roxa, cheia de curativos. Caiu assim, andando na rua. Ano passado ela quebrou a mão ao cair de um degrau. Aos 72 anos, ela está aos poucos perdendo o controle sobre si mesma. As funções fisiológicas já não obedecem como deveriam, as pernas estão bambas, as costas insistem em doer com qualquer mínimo esforço acima do normal, os olhos estão fracos. O mais triste nisso tudo é que ela é uma mulher lúcida, bem humorada, sociável e bonita. O rosto ainda não tem as marcas de tanta idade, embora os cabelos já estejam brancos.
Meu pai morreu há cinco anos e é admirável a força e a serenidade com que ela superou a perda de seu, provavelmente, único amigo, há mais de 40 anos a seu lado. Ela tinha tudo para seguir em frente, fazer coisas novas, viajar, se permitir novos desafios. Eu sinto que há essa chama dentro dela, mas o corpo não corresponde mais ao emocional. As coisas são complicadas para quem vai envelhecendo nesse mundo. Há obstáculos demais para os velhos. São escadas, embarques remotos, menus dentro de menus nos telefones celulares e nos computadores, muitas teclas a apertar antes de ouvir uma voz humana no telemarketing, regulamentos com letras pequenas demais, distâncias enormes para serem percorridas em estacionamentos, aeroportos, shoppings, e pressa, muita pressa. E com isso, uma mulher lúcida, inteligente, generosa e equilibrada torna-se dependente dos outros. Outros que não têm paciência. Outros que não se preocupam em disfarçar a irritação. Outros que não enxergam a diferença entre o corpo e o cérebro e a tratam como uma criancinha. E assim, experiências permanecem sem serem vividas, cidades sem serem conhecidas, projetos são engavetados, planos cancelados.
Talvez por gostar demais de minha mãe, ou porque eu mesma já não sou mais tão jovenzinha assim, o fato é que ando pensando demais nesse assunto. Coloco-me no lugar de um idoso cada vez que alguém buzina porque eu estou demorando alguns segundos a mais para inserir o cartão na saída do estacionamento. Cada vez que tenho uma sequência de 500 números para anotar para poder pagar uma conta. Cada vez que algum espertinho de alguma seguradora de cartão de crédito liga para tentar me vender mais algum seguro do qual eu não preciso, e dos quais é preciso uma grande dose de grossura para que entendam um “não”. Cada vez que sou informada, por alguém com a dicção terrível, que meu portão de embarque mudou para algum outro a dois quilômetros de distância, devido ao reposicionamento das aeronaves no pátio. Cada vez que me deparo com uma tela “touch screen”.
Nossos idosos caminham devagar e são atropelados por nós, que temos sempre muita pressa. Justo nós, que ainda temos tanto tempo. Justo eles, que já não tem quase nenhum. Deveria ser o inverso, não? Talvez o grande luxo nessa vida seja envelhecer tendo o direito de começar a andar devagar, sem ser atropelados e sem levar tombos. E talvez a chave para conseguirmos isso seja começarmos a desacelerar agora, e tirarmos do rosto a expressão de “enfado-conformado” quando estivermos lidando com nossos velhos, e aprendermos a ouvi-los. No fim das contas, quem acabaria ganhando mais seríamos nós mesmos. Porque poucas coisas confortam mais do que uma palavra certeira vinda de alguém que já passou por tudo, que já viveu muito e que já sabe que, de uma maneira ou de outra, tudo se resolve no seu tempo, e não no tempo que a gente acha que pode imprimir às coisas.
Agora vocês me dão licença que eu vou ali ver se minha mãe trocou os curativos, se tomou os remédios e se precisa de algo. Vou ali deixar que ela cuide de mim enquanto eu me engano achando que sou eu que estou cuidando dela.
17 comentários:
Lindo texto Rose!!!! Sei exatamente o que você sente.
E esse suceder de menos é apavorante.
Aproveitar todos os momentos é a grande sacada da vida.
emocionante e verdadeiro... tão verdadeiro que chega a dar medo. e eu morro de medo do envelhecer...
melhoras para a sua mamãe, amada.
Eu que sempre leio por greader, hj vim aqui dizer que, diferente de outros posts que eu racho de rir aqui, esse eu quase morri de chorar lembrando da minha avó ='(
Eu tenho vontade de mandar esse texto pra todos os meus contatos de email, msn, twitter, blog, facebook... da vida!
On e off line
='(
Me caiu uma ficha aqui.
Vou ali chorar de vergonha e raiva de mim mesmo, e já volto.
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aproveita bem o teu tempo com ela porque depois a saudade doi demais
Texto importantíssimo. Boa recuperação para a sua mãe!
cuide muito bem dela mesmo. aliás, todos deveríamos cuidar muito bem de nossos pais. são nossa referência de bem e mal, de certo e errado. não consigo conceber a perda de nenhum dos dois. mas até lá, pretende curti-los e amá-los muito.
Eu leio, me comovo, choro e só tenho a desejar que sua mãe fique boa logo.
As vezes bate um desespero principalmente quando penso que os meus estão tão longe. E eu nem vou poder cuidar, ser cuidada.
bjs
Texto brilhante e sensível, parabéns. Ver a vida pelos olhos dos outros, e respeita-los, esse me parece ser o segredo que esquecemos frequentemente.
Nem tive coragem de ler tudo pois meu coração ficou apertadinho de saudades da minha que se foi há 1 ano e 3 meses.
A saudade é imensa. Sinto falta até do trabalho que ela me dava após ficar depressiva e muito doente. É incrível como o mundo fica mais frio e cruel quando não temos mais nossa mãe conosco...
Minha mamãezinha tem 83 anos e eu sou apaixonada por ela.
O respeito, a consideração e o amor aos idosos deveria ser algo inerente ao ser humano, uma vez que todos vamos chegar lá.
Simplesmente lindo e verdadeiro. Só leio nunca comento, mas tive que vir aqui pra dizer: show!!! Beijos emocionados de uma antes simpatizante, agora admiradora!
Agradeço muitíssimo por todos os comentários. Muito bom ver que tanta gente se sensibiliza com esse assunto. Beijos a todos!!
Lindo!
Sensível!
Sem palavras....
Feliz da sua mãezinha por ter uma filha como vc.
Faz tempo que tento falar sobre isso e lendo seu texto percebo o quanto minhas tentativas foram incipientes. Texto perfeito, emocionante e verdadeiro. Obrigada!
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